26 de Agosto de 1969

 


Querido Diário,

                        Há uma guerra civil aqui na Rodésia.  Meu pai recebeu o Diploma do Doutorado de Engenharia Electrotécnica e fomos almoçar fora para comemorar.  Mas a comemoração acabou com um sabor amargo, quando regressamos a casa. Ou seja, o que restou da nossa casa. 
                        Ao chegarmos deparamos-nos com um cenário de terror.  A nossa casa estava em ruínas, toda queimada... e a Linda, nossa cadela pastor alemã e minha baba; estava morta. Além de a matarem a tiro de metralhadora, queimaram-na.
                        O meu pai não aguentou e entrou em coma. A minha mãe pediu à embaixada portuguêsa se podiam agilizar a transferir do meu pai para o hospital de Lourenço Marques/Moçambique... porque ela não falava inglês e não conseguia comunicar com os médicos na Rodésia. Meu pai foi transferido para o hospital da capital de Moçambique. Esteve em coma 3 meses e quando saiu do coma não sabia quem era tinha perdido a memória de tudo. O doutor disse à minha mãe que isso era normal em situações de traumáticas. Que ele iria recuperar gradualmente a memória. Podia demorar semanas como podia demorar meses... mas era importante que não forçassem o processo, pois poderia surtir o efeito contrário.  
                        A mãe e eu íamos todas as semanas ver meu pai e como eu ouvi o que o médico disse a minha mãe, eu fiz tudo para não deixar meu pai perceber o quanto me deixava triste ele não se lembrar de mim. Ao início e durante uns dois meses, sensivelmente, ele tratava minha mãe de menina bonita. E no primeiro dia que o visitamos após ele ter recuperado do coma... ele perguntou-lhe se eu era irmã dela. Minha mãe apenas lhe disse que eu era sua filha. Eu fazia tudo para o fazer rir com brincadeiras e contando histórias divertidas que eu inventava na hora. Quando sentia que a dor que eu escondia na alma ia fazer-me chorar... corria para o corredor para chorar sem que ele e minha mãe não visse. Depois limpava as lágrimas, respirava fundo e voltava a entrar no quarto na brincadeira. Mas um dia demorei mais a parar de chorar e minha mãe veio à minha procura e deu comigo sentada no chão, do lado de fora do quarto e ficou triste. Apressei me a limpar as lágrimas e disse lhe: "Já passou mãe, já estou bem." E, forçando um sorriso radiante entrei no quarto na brincadeira.

                        O dia em que o meu pai começou a lembrar-se de nós ele começou a chorar e a pedir desculpa. Eu saltei para cima da cama dele e perguntei: "Porquê que está a chorar?"... ele respondeu em lágrimas: "Minha querida filha, como pode eu me esquecer das duas pessoas mais importantes da minha vida!", e continuou: "Desculpa Céu!"... este é o nome da minha mãe, ela é Maria do Céu e ele sempre a chamou de Céu.  Minha mãe logo respondeu: "Não te preocupes Nelo, meu querido, agora tudo vai ficar bem e abraço o com carinho. E eu disse: "Ó pai, não faz mal, tu estavas doente. Não foi culpa tua.". E meu pai me abraçou dizendo: "Esta é a minha linda Princesa. Adoro-te Irene!".
                        Depois de meses de inferno e tortura emocional, esse dia, foi como que depois de meses de total escuridão se abrisse o sol mais radiante num céu de um azul sem nuvens mais belo de sempre. O meu pai estava de volta da noite que lhe roubou a memoria e, agora já o podia chamar de pai de novo. 


NOTA: Este relato é de algo que aconteceu quando tinha dois anos. E aconteceu tal como foi relatado. Este momento de minha vida começou a 26 de Agosto de 1969.


Referência a:

Comentários

Anónimo disse…
Incrível. Que vida dura e em tão tenra idade. ❣️

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