Roleta da vida

Roleta da vida

Biografia

de

Irene Cruz


Matas do Louriçal, Louriçal PBL



2021


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Dedicatória



      Eu devo a pessoa que sou aos meus saudosos pais. Deram-me uma educação exemplar e ensinaram-me a dar o melhor de mim ao universo. Sempre me disseram e mostraram com ações que quando distribuímos o bem, não só crescemos como alma, como o universo retribui o bem que lhe fazemos e damos. Mostraram-me que nós somos seres de LUZ, nascemos para afastar a escuridão que tudo faz para afogar a LUZ DIVINA em breu. Ao deixarmos fluir a nossa luz e amor para todos à nossa volta, não só aliviamos a dor e o peso da vida aos que estão à nossa volta, como nos sentimos mais leves enquanto nossa energia positiva aumenta o seu raio de ação, para bem de todo o ser vivo à nossa volta - transbordando o mundo à nossa volta da mais pura LUZ.

      Portanto,  esta história é dedicada aos meus pais com todo o meu amor e saudade. Mas também à minha querida irmã caçula, Ana Maria, a melhor mana e a mais querida tia do mundo, com forte abraço e muito amor. Adoro-te mana!




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Prefácio



      Vamos numa viagem no tempo e na história de uma menina, agora mulher e mãe de duas lindas princesas, a quem ama incondicionalmente. Vamos conhecer os desafios que teve de enfrentar desde que nasceu. E relatar alguns momentos em que teve de ultrapassar obstáculos complicados e algumas aventuras incríveis que teve ao longo da vida. Uma biografia repleta de emoção.

      Divirtam-se nesta viagem!


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Biografia de Irene Cruz




      Eu nunca soube o que era ter a vida facilitada. Desde o dia em que nasci, sempre tive de lutar, literalmente, só para me manter viva.

      Ainda na barriga de minha mãe (quinta semana de gestação), a morte nos perseguiu.

      Maria estava a estender roupa no estendal quando se apercebeu da presença duma tarântula. O bicho era maior que a mão dela e começou a lançar saltos na sua direção. Maria começou a recuar e a tarântula a saltar na direção dela... de repente Maria tropeçou nos degraus que davam acesso à cozinha e caiu sentada nos mesmos.

      O próximo salto daquele bicho seria para cima dela e aí estaria tudo acabado. Maria e eu (ainda por nascer), estaríamos mortas. 

     De repente - SPLAT - um tijolo cai em cima da tarântula, esmagando-a. O jardineiro Malakai, apercebendo-se da situação agarrou num tijolo, que usava para fazer os canteiros, dirigiu-se, sorrateiramente na direção da tarântula esmagando-a mesmo a tempo.

      Maria saiu dessa com o ombro deslocado e muita gratidão ao velho Malakai que trabalhava para o condomínio, como jardineiro, à alguns anos.


      Quando eu nasci, a 3 de Agosto de 1967, a família encontrava-se muito bem financeiramente. Poderia-se mesmo dizer que nasceu com "uma colher de ouro na boca". A situação financeira da família de Helena também oscilava, de vez em vez, entre uma vida desafogada e a mais absoluta miséria

      Na minha primeira semana de vida, o meu meio-irmão - Nando - tentou matar-me apertando-me o pescoço. Se não fosse minha meia irmã - Paula - gritar: "Deixa a bebé, ainda a matas!" (...). teria morrido nesse dia.

      Ao ouvir o grito de Paula, minha mãe correu para o berçário. Chegou mesmo a tempo de ver Nando a apertar-me o pescoço. Eu já estava roxa. Fiquei com as marcas das mãos de Nando no pescoço. Foi por um triz.


      Tinha pouco mais de 8 meses quando fomos viver para a Rodésia e lá aconteceu quase tudo. Mas isso é matéria para o próximo capítulo.

      Até já!


      É sensato explicar que aqui na antiga Rodésia, vivíamos numa moradia com um enorme e bem recheado pomar nas traseiras da mesma. E que estava situada num monte a "paredes meias" com uma zona de floresta virgem. Assim puderam perceber o porquê de alguns dos próximos acontecimentos. 


      Tinha eu um ano, estava brincando no jardim e vi uma cobra a deslizar na minha direção… comecei a caminhar até ela para ir brincar com minha nova amiga. Linda, a minha cadela/baba (Pastor Alemão), rebentou a corrente, com uma grossura de, aproximadamente, 2cm, e correu na minha direção, dando-me um pequeno encontram fazendo me cair no chão e depois corre na direção da cobra, esmagando-lhe a cabeça com a sua enorme pata.


      Poucos meses depois, nesse mesmo jardim, apareceram um bando de macacos cães - entre eles uma fêmea - para vir roubar fruta ao meu pomar. Algo que faziam com muita frequência, geralmente, mais perto do fim de tarde. Mas neste dia vieram um pouco mais cedo. Eu estava a brincar no jardim, ao pé da Linda quando os vi no pomar. Eu que via todo e qualquer ser como um potencial amiguinho de brincadeira, ponho-me a correr para junto deles. A fêmea viu-me e avançou na minha direção vagarosamente. 

      Era comum, naquela zona, as fêmeas dessa espécie, raptarem crias humanas para criar. E eu quase fui uma dessas crias. Mais uma vez, a cadela maravilha veio em meu auxílio. Dá-me um encontram fazendo me cair, de novo, no chão e vai no encalço dos macacos cães. A fêmea foi morta logo ali. Os outros puseram-se em fuga. Linda foi no encalço deles. Matou mais dois e feriu uns três, que conseguiram fugir.


      Um dia, a seguir ao almoço, estávamos, minha meia irmã e eu no quarto, para dormir a sesta… quando algo estranho começa a suceder… minha caminha começa a deslizar, pelo quarto, sozinha. O que achei imensamente divertido. Paula pôs-se a gritar, assustada, sentada em cima da cama dela com a cabeça entre as pernas. Eu não percebia porquê que estava tão assustada. A minha cama era agora uma cama popó. Comecei a rir e a fazer o som de uma buzina - "popó, popó" (...).

      Meus pais estavam na sala a jogar xadrez quando,  de repente, minha mãe nota que meu pai estava a baloiçar do lado para o outro - "Porquê que estás a baloiçar, Nelo?" - perguntou-lhe ela. Ao que o meu pai responde: "Tu é que estás a baloiçar.". Nisto, dão um salto e dizem em Uníssono: "É um terremoto!". Ao dizer isso começam a ouvir a Paula a gritar no quarto e correm para lá. Nando, que estava no quarto ao lado, também correu para lá e estava a tentar abrir a porta do quarto, sem sucesso, quando meus pais chegaram ao pé dele. Nando exclamou: "Está algo a emperrar a porta! Vou tentar entrar pela janela." - e sai para o jardim das traseiras para entrar pela janela do quarto que estava entreaberta, por sorte. Nando pulou para dentro do quarto e viu que a minha cama estava a atravancar a porta. Tirou de lá e devolveu-a ao seu lugar habitual. Depois abriu a porta. O pequeno sismo já tinha passado e a Paula já estava mais calma embora ainda estivesse a soluçar. Eu viro-me para os meus pais de disse, divertida: "Papá, mamã, minha cama virou popó." - E ri-me. "Pois virou, filha." - respondeu meu pai com um sorriso brincando com os meus caracóis pretos.



      Em Julho de 1964 estourou uma guerra civil na antiga Rodésia (hoje conhecida como Zimbábue), que durou até 1975.

      Em 1969, um grupo de terroristas invadiu minha casa e, por pouco, não morreram todos. 

      Estávamos a almoçar num restaurante na cidade de Cabora Bassa quando terroristas invadiram a nossa casa, localizada nos arredores da cidade. Pilharam, mataram a Linda e atearam fogo a tudo, inclusive ao cadáver da Linda. Quando chegamos a casa e nos deparamos com aquele caos... o meu pai, Nelo, entrou em coma profundo e como minha mãe não sabia falar inglês, pediu à embaixada portuguesa para a ajudar a transferir o marido para o hospital de Lourenço Marques (Moçambique) - hoje denominada MAPUTO. O que prontamente foi agilizado. 

      Devido à guerra civil, Minha mãe, só podia levantar uma pequena quantia de dinheiro (Dólar Rodesiano) do banco. Cada passaporte só podia vir acompanhado por 20$. Como tal ela só pode levar com ela 100$. 

      Quando chegou a Lourenço Marques, depois do meu pai dar entrada no hospital, conseguiu alugar um T0 e conseguiu trabalho num orfanato como cozinheira. Nando conseguiu trabalho na Olivetti, uma fábrica de máquinas de escrever, apesar de só ter 13 anos. Paula e eu ficamos com Minha mãe e Paula foi matriculada na escola primária local enquanto eu acompanhava minha mãe até ao orfanato onde arranjei alguns amiguinhos. 


      Maria criou Nando e Paula como filhos desde que casou com Nelo.

      Nelo esteve em coma profundo quase 2 meses e quando recuperou do coma esteve 3 meses hospitalizado. Não sabia quem era, tinha perdido a memória de tudo. Os médicos disseram que era normal em casos de coma prolongado. Mas que a memória dele irá voltar aos poucos. Aconselha minha mãe a não tentar forçar a memória dele pois isso poderia surtir o efeito contrário e ele nunca mais recuperaria a memória. A memória dele deveria ser recuperada naturalmente, no ritmo dele. Tinham de ter paciência. Eu estava presente quando minha mãe estava a falar com o médico e, apesar de ter apenas 2 anos percebeu que não podia contrariar meu pai e não devia obrigá-lo a lembrar-se que eu era sua filha.

      Nas várias visitas que fiz ao meu pai, no hospital, enquanto ele não se lembrava de mim ou da minha mãe... eu tentava agir com normalidade. Mesmo quando meu pai perguntou a minha mãe:

      - Quem és tu cara linda? E esta linda menina, é tua irmã?

      - Chamo-me Maria e esta é a minha filha Irene.  - respondeu disfarçando o nó na garganta. 

      O meu coração apertou-se e doeu, mas eu continuei a brincar e a cantarolar para disfarçar a dor que me ia na alma. Lembrava-me do que o médico dissera à minha mãe... não podia mostrar a tristeza, para o pai não piorar. Quando senti que não ia aguentar mais sem começar a chorar, eu corria para o corredor. Sentei-me no chão e chorei compulsivamente. Quando mamá achava que eu estava a demorar para voltar, saía do quarto para me procurar. Quando a via limpava as lágrimas e dizia: - Está tudo bem mamá, já passou. Vês! - e abria um sorriso. E, na galhofa, entrava no quarto do papá como uma menina traquina (no bom sentido). Até o fazia rir.

      - És uma marota, deixaste a tua mãe preocupada! - disse ele com voz meiga.

      Saltou para a cama dele e mostrou-lhe a minha boneca (foi-me oferecida por ele, mas não lhe podia dizer isso).

      - Olhe, esta é a Lady. Ela é uma princesa inglesa. - informei o. 

      - Então é tua colega. Tu também és uma princesa! - respondeu acariciando-me o rosto.

      No regresso de uma das idas ao hospital, e ao passar por uma montra duma doçaria, enquanto mamá falava com uma amiga que lhe perguntara da saúde de seu marido, eu admirava uns caramelos com recheio de chocolate que estavam expostos na montra, distraída. Quando me apercebeu que mamá me olhava com um ar triste por não poder me comprar os caramelos... eu, rapidamente disse: - Oh, eu não quero isso mãe! Eu nem gosto deles!

     - Se quiseres eu compro uma meia dúzia! - disse Solange, a amiga da mãe.

      Irritada, pois não queria que minha mãe se sentisse triste, eu grito... - Não ouviu, eu disse que não gosto disso. - e daí uma corrida para me afastar um pouco daquela mulher. 

      Maria começou a desculpar-se por causa da filha, mas Solange interrompeu-a dizendo: 

     - Tens ali uma filha de ouro. Não quer que a mãe se sinta envergonhada. Tão pequenina e já com tanta sabedoria!

      - É verdade! - concordou Maria.



      Ao longo de minha infância, Nando sempre praticou bullying comigo. Partia-me os brinquedos, aterrorizava-me, e por vezes batia-me.


      Numa ocasião ele e Paula combinam fingir que ela tinha cortado os pulsos e que estava morta. Paula deitou-se no chão com molho de tomate nos pulsos e uma poça de sangue (ou seja, molho de tomate) perto de cada pulso e Nando começou a gritar. Quando eu chego perto deles e vejo-a naquele estado e Nando a gritar "está morta, está morta", eu saiu desesperada a correr para chamar ajuda, batendo à porta dos vizinhos, dizendo lhes da desgraça que tinha acontecida… quando eu voltou, com os vizinhos, estavam ambos a rir a bandeiras despregadas. Os vizinhos deram-lhes um valente raspanete, dizendo que não se pregavam partidas dessas a crianças. Afinal, eu tinha apenas 3 anos e fiquei muito assustada e aflita com tudo aquilo.


      Nesse ano, nós estávamos a passar férias num parque de campismo no Malawi, como muitas vezes fazíamos. O parque estava rodeado por uma cerca metálica e perto de onde a nossa caravana estava plaqueada, do outro lado da cerca via se a montra duma loja de brinquedos. Eu, empoleiro-me na cerca, para ver melhor a montra de brinquedos. Nisto, começo a estremecer e a revirar os olhos. Nando, que na altura tinha 16 anos, percebeu logo o que se estava a passar. Estava a apanhar um choque elétrico. Agarrou numa vassoura com cabo de pau, meteu o pau entre mim e a cerca e empurrou-me para o chão.

      Um cabo de alta tensão descarnado estava encostado na cerca.

      Eu estava inconsciente e tinha a base dos pés e as palmas das mãos queimadas. Nando agarrou-me ao colo, levou-me para o choveiro da caravana e abriu a torneira de água fria. O choque térmico fez com que o meu coração voltasse a bater. Quando o pronto socorro chegou, o socorrista disse que Nando salvo a vida da irmã com o seu raciocínio rápido.

      Nando deve ter pensado que com isso saldará a dívida que tinha comigo.



      Numa visita guiada a uma reserva na Tanzânia, um ano depois, estava a caravana turística parada perto de uma família de leões, quando eu saio disparada do jipe sem que ninguém conseguisse me travar e corro em direção aos leões. Deixando uma Maria e um Nelo aterrorizados e em pânico para trás. O guia disse calmamente, com a arma dos tranquilizantes apontada para o macho alfa, não se preocupe, eles não a vão atacar, desde que ninguém mais se mexa. Os leões adultos formaram uma linha entre as crias e a caravana, mantendo um olho nas crias e em mim, que brincávamos alegremente, e outro bem atento nos adultos.


      Minha mãe, mais calma, fala para mim, dizendo:

      - Filha, agora despede te dos teus amiguinhos e anda daí. Está quase na hora de almoço e os pequenos vão querer almoçar. 

      - Tá bem mãe! - e pegando já numa das crias de leão contínuo - Mas este quer vir almoçar connosco.

       - Irene, deixa o leãozinho. Imagina se alguém te pegasse e levasse para longe da mãe. Tu ias ter muitas saudades da mãe e a mãe ia ficar muito triste e doente.

      - Pronto, tá bem (...), vais ter de ficar, mas eu volto. Tchau! - aceno às crias de leão que me devolveram um tchau em linguagem de leão bebé... e viro-me para os leões adultos, acenando - Tchau! - e todos os leões adultos (dois machos e quatro fêmeas) rugiram, baixinho, de volta, em forma de despedida.

      De certeza, que aqueles leões deveriam estar a pensar que aquela cria humana ou era doidinha ou muito corajosa.

      Então, volto para junto dos meus pais sem percalços.



      Nesse mesmo ano, fomos passar um fim de semana à fazenda de um amigo do meu pai… ou seja, íamos… se eu não tivesse estragado os planos de férias a todo mundo. Explicação já de seguida. Segurem se bem que esta vai ser de morrer a rir.

      Já estávamos na fazenda. Era enorme, e "paredes meias" com uma área extensa de zona selvagem. Perto dali, havia uma pedreira e de vez em vez ouviam-se explosões que faziam estremecer o chão. Nessa altura a minha querida irmã caçula a Ana Maria, a quem eu chamava Anny, já era nascida. Tinha uns 7 meses. Nasceu a 28 de Janeiro de 1973.

      O dono da fazenda estava a explicar ao meu pai que alí perto havia um rio repleto de crocodilos e estava a apontar para um carreiro de mato que ia dar ao rio. E o que é que a Irene faz… depois de ouvir, atentamente, o relato do Sr. Nelson… sai disparada pelo carreiro, em direção ao rio a gritar - Vou nadar com os crocodilos!

      Um pai desesperado e um Sr. Nelson aterrorizado correm atrás de mim… o meu pai pegou-me no colo, eu barafustar - Deixei-me, deixei-me, quero ir nadar com os meus amigos crocodilos!

      Já dentro da fazenda meu pai tenta me explicar que os crocodilos são perigosos e que não são amiguinhos de ninguém.  Eu nem o deixo acabar a explicação e já estou a correr porta fora a gritar - Vou nadar com os crocodilos!

      Meu pai alcança-me mesmo antes de eu chegar ao carreiro. Leva-me para dentro e atam-me, literalmente, a uma cadeira na cozinha de lenha onde íamos almoçar. Explica a uma plateia incrédula (o Sr. Nelson, sua esposa e três filhos de 9, 13, e 18 anos), que sua filha vê todo o ser como um potencial amiguinho de brincadeira e nada a faz ver o contrário. Contaram-lhes o episódio dos leões, entre outros, para total espanto de toda a plateia.

      Ninguém falou, a não ser o filho mais velho que disse - A miúda é maluca! 

      Almoçaram em silêncio,  com alguns olhares incrédulos na minha direção que não parei de protestar recusando-me a comer. 

      Escusado será dizer que o tal fim de semana na fazenda terminou ali.  A seguir ao almoço meus pais pediram desculpa pelo incómodo.  Meteram-me no carro - sobre protesto - e voltamos para casa. 



      1974, estávamos a viver em Angola. A vida sorria-nos. E eis que o destino quis pregar-nos mais uma peça. Começou a guerra do ultramar. Sabíamos que ninguém nos faria mal, intencionalmente… éramos queridos por todos (nativos e portugueses). Mas o meu pai temia, e com razão, que pudéssemos ser apanhados no fogo cruzado. Por isso decidiu largar tudo,  agarrar na família e começar do zero (de novo), noutras paragens.

      O governo Britânico já lhe tinha oferecido uma colocação numa ex-colônia britânica a dar formação técnica a jovens engenheiros de electromecânica, tudo o que teve de fazer foi aceitar. E rumaram à África do Sul.


      Era o melhor a fazer. 

      Semanas antes, eu tinha assistido a um amiguinho morrer queimado, após um míssil atingir o prédio onde ele morava. Zeca e eu éramos da mesma idade. Ele lembrou-se que o irmão de colo estava a dormir no berço dele e entrou no prédio, subindo ao apartamento, com o prédio já em chamas, e foi ao berço pegar no irmão envolvendo-o num cobertor molhado. Saiu para a praça, todo queimado, entregou o irmão nos braços dum soldado e caiu morto aos pés dele. Foi terrível! Até o soldado ficou emocionado.

      Se os Homens usassem as células cerebrais nunca teriam inventado a guerra. Uma total perda de tempo e de recursos em algo que é totalmente desnecessário e despropositado.


      Apesar dos angolanos afirmarem que nenhum mal viria para nossa família, meu pai decidiu sair de Angola rumo à África do Sul. Apesar de serem estimados por todos os angolanos, por serem dos poucos brancos que sempre os tratou com o devido respeito. Todos os funcionários da casa de Nelo eram bem pagos e tinham todos os seus direitos laborais em dia. Além disso, pelo Natal todos recebiam um cabaz alimentar, bem recheado. Mesmo assim, Nelo achou melhor sair de Angola… receava que fossem apanhados no fogo cruzado.


      A caminho da África do Sul, no meio da coluna militar, alguns carros foram atingidos por morteiros. Quando Nelo viu uns dois carros irem pelos ares… uma à sua frente e outro mais atrás, saiu da coluna, ultrapassando todas as viaturas, inclusive o camião da tropa que ia à frente da coluna. As tropas do camião apontaram as armas ao carro de Nelo. Ele parou, mas só para assinar um termo de responsabilidade e seguir viagem fora da coluna militar. 

      E foi o melhor que ele fez. Já tinham passado a fronteira de Angola/Namíbia e estavam parados num restaurante, quando chegou o que restava da coluna militar… Um solitário camião do Exército. Disseram os militares que foi o melhor que Nelo fizera. Pois, todos os que vinham na coluna foram mortos, inclusive os outros dois camiões do exército que escoltavam os civis. Um no meio da coluna e outro no fim da linha. Só se safou o que ia à frente. Nelo, então, explicou aos tropas que um de seus funcionários lhe tinha dito que nada de mal lhes iria acontecer porque a FRELIMO tinha uma foto do seu carro e que Nelo e sua família seria das poucas que iriam escapar com vida. 


      E assim foi!



      Em 1977, fomos viver para a Zâmbia. O meu pai terminou de formar jovens engenheiros na África do Sul e foi destacado para fazer o mesmo na Zâmbia (ex-colônia britânica). Vivemos lá até Junho de 1983.


      Primeiro no Kabwe e depois na capital Lusaka.

Aí é que aconteceu algo que fez meus pais arrumar malas e voltar para o Kabwe.

      Andavam a haver mortes de jovens na área. Pensava-se que haviam dois serial killers na zona. Pois eram dois os modos OPERANDI. Nuns casos as jovens eram aliciadas a aceitar boleia e depois eram encontradas mortas (violadas e torturadas até à morte. O outro simplesmente atropelava-as mortalmente.

      Eu costumava ir a pé da escola até casa. Porque a minha escola não era tão longe. A da Ana, a primária era mais longe e o meu pai ia buscá-la de carro. A certo ponto comecei a sentir que me observavam. No início era só isso. No dia a seguir a uma vizinha me ter oferecido boleia e eu ter recusado, alegando que o caminho era curto e já estava quase em casa, mas agradecendo a gentileza… passei a sentir uma ameaça mais séria. No caminho entre a escola e minha casa tinha que passar por uma zona de mata dum lado e do outro da estrada. Era mais ou menos 1km de caminho. Assim que entrei nessa zona, alguns metros a frente, algo me disse para eu me atirar para o meu do mato - uma voz interior que eu acatava imediatamente. 

      Foi mesmo a tempo… atirei-me para o meio da mata como um lince, olhando para trás. Vi um carro preto com vidros fumados a toda a velocidade a raspar o pequeno barranco de terra que dividia a estrada da zona de mata. Não consegui ver o condutor, pois os vidros eram muito escuros. Naquele momento mantive o sucedido só para mim, pensei - "pode ter sido acidental, não vou preocupar os meus pais por nada."

      Dois dias depois, estava já a chegar à esquina de minha casa, quando a voz interior me disse - "corre, entra já em casa, depressa." - e eu comecei logo a correr e entrei no portão de ferro com 2 metros de altura (assim como o muro à volta da casa), o carro ainda raspou na esquina do muro junto ao portão. Era o mesmo carro preto. Decidi avisar as filhas da vizinha da frente que costumavam vir nadar para a minha piscina aos fins de semana. E disse-lhes, assim como a minha irmã Ana (a Paula já não vivia connosco, apos aprontar todas meu pai enviou-a para um colégio de freiras em Portugal), para que se eu gritasse - para trás- era para elas se recolherem imediatamente na casa mais próxima até eu dizer que era seguro atravessar a rua.

      Nesse mesmo fim de semana, Sábado, eu enfiei-me na piscina enquanto a Ana foi chamar as vizinhas para vir ter connosco. Estava a Ana a abrir o portão quando eu senti a ameaça e a voz a dizer cuidado. Grito de imediato - "Para trás!" - e corro para o portão. Minha irmã recua de imediato e quando chego ao portão vejo a traseira do carro a sumir em direção à cidade. As minhas vizinhas estavam na varanda da casa delas, com a mãe, para onde correram quando ouviram o meu grito. Elas já vinham a descer a ladeira da casa delas quando eu gritei. Aí já foi demais… agora tinha atentado contra a minha irmã. "Chega!" - decidi, e contei tudo aos meus pais que me deram um raspanete por não lhes ter dito nada logo de início. Eles chamaram a polícia e eu relatei tudo de novo aos agentes. Nessa mesma semana mudamo-nos, de novo, para o Kabwe.


      Pouco tempo depois, íamos do Kabwe para uma cidade vizinha para ir passar um fim de semana num parque de campismo… estávamos a passar por uma zona de mato, dum lado havia um conjunto de cabanas que se via da estrada, por entre as árvores. Do outro havia, ao longe, um rio, onde as mulheres dessa aldeia iam lavar a roupa. Era um grupo razoável de umas seis mulheres adultas, cinco adolescentes e algumas crianças. Já estavam quase todas do lado da aldeia. Faltavam duas adolescentes e duas mulheres. Uma das raparigas trazia uma bacia azul à cabeça. E depois de nós passarmos por ela, ela começou a atravessar a rua. Surge uma carrinha de caixa aberta branca, não se sabe de onde e bate violentamente na garota. A bacia voo por cima da carrinha e a roupa espalhou-se pela estrada. A garota voo no ar foi chocar contra o pára brisas da carrinha e cuspida de volta para a estrada mesmo em frente à carrinha. Foi horrível. Ela não teve hipótese. Morreu no local.



      Quase a completar os 16 anos, em Junho de 1983, os meus pais decidiram voltar de vez ao seu país natal. Eu não estava a gostar nada da ideia. Sentia que o dia que entrássemos em Portugal, para lá passar a residir permanentemente, seria o dia em que tudo iria mudar para muito pior. E tinha razão...

      Meus pais compraram casa, em Portugal, por correspondência. Nas fotos parecia ser uma boa casa. Quando chegaram a Portugal, à sua nova casa, era metade da área que indicava na foto. A foto de fachada incluía a casa do vizinho que era geminada com a deles. Era velha e a precisar de muitos arranjos- a "casa de banho" do piso de cima (que na realidade era o sótão (transformado num quarto com "casa de Banho" privativa), consistia em uma sanita e um lavatório (uma bacia em cima duma estrutura metálica, sem ralo ao lado duma torneira. tinha uma única "janela", ou seja, postigo que dava para a lateral da casa. E foi nesse quarto que as minhas duas irmãs e eu passámos a dormir.

      O piso de baixo tinha uma casa de banho mais ou menos normal (banheira, lavatório, bidé e sanita... com loiças muito velhas, no vau de escadas que davam para o sótão); uma espécie de sala de estar e um quarto. Tinham feito um pequeno acrescento à casa onde apresentaram uma kitchenette e uma sala de refeições minúsculas. Na cave tinha uma espécie de adega/cozinha de lenha; um pátio (por baixo da kitchenette+sala de refeições) e uma tirinha de terreno com duas árvores (um limoeiro e uma laranjeira).

    Foram enganados e bem! Compraram "gato por lebre"!


      Depois foi o caso de os fundos monetários que tinham no banco, na Zâmbia, terem ficado retidos. Meu pai teve três anos de "batalha campal" para conseguir que o seu dinheiro lhe fosse recambiado para a sua conta bancária em Portugal. Até lá quase que tiveram de pedir esmola para pôr comida na mesa. Valeu-lhes uma família vizinha que tinha terrenos e criação e meus pais, a irmã casula e eu iam ajudá-los com a lavoura em troca de bens alimentares de criação caseira. Nessa altura Cris já não vivia connosco. Tinha ido morar para Lisboa.

      Os anos posteriores a esses, até à data, têm sido de luta diária para conseguir pôr comida na mesa. Um INFERNO!



      Hoje eu sou uma mulher casada com duas filhas e vive numa luta diária para que nada falte às suas princesas. São duas meninas bem formadas. Não são daquelas crianças que vivem a pedir isto e aquilo aos pais. Elas sabem dar valor à luta diária dos pais e percebem que os pais, sempre que podem dar-lhes um mimo em forma de um tablet ou algo do gênero, eles dão. O afeto não lhes falta nunca. E têm o que comer, o que vestir e calçar e tudo o que é essencial à sua sobrevivência. Não têm luxos, nem vestem roupas de marca, etc… Mas elas não se importam com essas futilidades. E estranham quando veem colegas seus a destruírem um telemóvel, praticamente novo, só para obrigar os pais a comprarem-lhes um de última geração. Como elas mesmas já disseram - “Eles nem sabem aproveitar o que têm!”.


      São duas meninas sábias!


      Mas agora, vem a pior parte desta saga.


      Em Setembro de 2018, uma tempestade assolou o nosso país, que resultou em estragos avultados em todo o território nacional. Eu não escapei a tal sorte.


      Na altura até me considerei uma pessoa de sorte pois houveram vizinhos cujos danos a suas casas foram bem piores. Eu só tinha meia dúzia de telhas deslocadas e umas três ou quatro partidas. E como tinha e tenho telhas de reserva para substituir as partidas, julguei que seria um problema de fácil solução. 


      No dia a seguir à tempestade, na tentativa de substituir uma chapa, que havia partido, no coberto, meu marido, após ter substituído a mesma caiu do escadote a baixo. Deslocou a anca direita e partiu o fémur em dois pontos. Foi parar ao hospital. Quando se recuperou, falou logo a um empreiteiro para que lá fosse colocar as telhas assim que possível.  


      A resposta do mesmo foi - “Vou lá para a semana.” – não apareceu e todas as semanas a resposta repetia-se. E essa semana nunca chegava. Contactamos outros empreiteiros da zona e a resposta era sempre a mesma e o resultado era o mesmo. E passou se meses e depois anos e a situação a degradar-se cada vez mais, dado as infiltrações a cada chuvada que vinha. Até há data ninguém se dignou a aparecer para reparar as telhas e o que de início era um trabalho de poucos custos se tornou num pesadelo medonho que irá custar uma pipa de massa que nós não temos como pagar.
     Mas vou ter de me desenmerdar me sozinha. Não tenho ninguém a quem recorrer.  Não posso confiar em ninguém. Por ter confiado em alguém e ter pedido ajuda é que me ferrei. Tiraram me as filhas. E corro o risco de nunca mais as voltar a ter nos meus braços. 

     De ajudas dessas esta o inferno cheio.


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Resumo




      Eu enfrentei muitos desafios ao longo da sua vida. Foi um percurso de vida acidentado, repleto de altos e baixos. Passei por muitas provações e vivenciei tormentos de guerra e fome. Minha família e eu vimos a morte à frente dos olhos em muitas ocasiões.

      Mas, tudo isto só serviu para me tornar mais forte. E, apesar de tudo, ainda hoje, tento manter uma postura otimista e alegre perante a vida. Tento ser uma pessoa bem humorada, simpática e alegre. Amiga leal que está sempre pronta para ajudar o próximo num momento difícil.

      Mas nem por isso a vida me dá tréguas. Para cúmulo, há aquelas pessoas malignas e tóxicas, que só vivem para destruir a vida alheia. E ainda têm o descaramento de apontar baterias para cima de duas crianças só para me atingirem. São tão covardes assim. 

      Que Deus vos perdoe. Pois eu nunca vos vou perdoar e tudo farei para que engolem até à última gota de fel que destilaram contra minhas queridas filhas e eu.

     Monstros!


Comentários

Nádia Morry disse…
A Dedicatória é linda! Adorei! E a sua história de vida é simplesmente incrível. Um misto de emoções fortes. Fantástico.
Anónimo disse…
Wow! Já li duas vezes, é empolgante!

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